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Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Constituição da República Federativa do Brasil
Em 2006, passei seis semanas visitando algumas unidades da Fundação Casa, então chamada de Febem, em São Paulo.
Na época, um voluntário oferecia aulas de skate para meninos e meninas que viviam sob a custódia da instituição recebendo medida sócio-educativa. Tive permissão para fotografar estas aulas dentro das unidades da instituição.
Durante estas seis semanas, além de fotografá-los, também convivi com estes garotos. Ouvi suas músicas, as que eles escreviam ou reproduziam, discorrendo sobre a perda da liberdade, o arrependimento, a tristeza de ter magoado ou decepcionado a própria mãe, a infelicidade e a solidão dentro da unidade em que viviam e estudavam. Também os vi produzindo artesanato, falando dos seus times de futebol favoritos, e contando vantagens. Nas horas livres, jogavam dominó.
Numa tarde chuvosa, a quadra alagada pelas inúmeras goteiras nas telhas, me convidaram para jogar dominó com eles. Ganhei uma partida com o parceiro que me escolheu. Perdi outra. Talvez naquele momento da disputa, formalidades esquecidas, pela primeira vez não iniciaram cada frase dirigida a mim com um ‘a senhora’. Por cima do tabuleiro, me pareceu irrelevante, por momentos, o incrível abismo que distancia e separa a vida destes adolescentes da minha.
A vida institucionalizada não é fácil. O que presenciei foi um complexo gerenciamento da vida destes adolescentes, com horários rígidos para o ensino regular, classes extra-curriculares, e outras atividades oferecidas pela instituição. Alguns cuidavam do jardim e da horta, outros faziam artesanatos, outros ainda aprendiam ofícios como fazer bijuterias ou tear. Ao longo deste tempo, também presenciei o trato dos monitores com os internos, alguns carinhosos, outros grosseiros e agressivos. Para entrar em uma unidade, é preciso ter permissão do diretor, e é preciso passar por uma revista minuciosa. Muitas vezes, aguardei horas para conseguir entrar na unidade que fotografaria. Nem sempre consegui. Passei algumas tardes esperando na portaria, e a autorização jamais chegou.
Mas talvez mais simbólicas do que as interações que tive com os meninos da Fundação e as dificuldades para conseguir entrar nas unidades, foram as reações de muitos dos meus colegas e amigos. Mais de uma vez ouvi que deveria jogar uma bomba dentro da Casa quando estivesse saindo e “acabar com este problema de uma vez por todas”.
Este trabalho me fez refletir muito sobre a relação que nossa sociedade tem com estes garotos que cometeram infrações, e como viramos as costas para as questões reais que contribuem para levar estes meninos e meninas ao crime.
Muitos de nós preferem acreditar que há apenas um fundo estritamente pessoal nas escolhas que levam uma criança ou adolescente ao crime. Do alto de nossos privilégios, desconsideramos rapidamente problemas como a desigualdade social e a pobreza, o preconceito, o difícil acesso a educação de qualidade e a artigos básicos e também os de luxo (que são amplamente propagados pelos canais de televisão e outras mídias, gerando um desejo inacessível para muitos).
Finalizei meu projeto com fotos de Michel, um adolescente que por cinco vezes foi sentenciado a medidas sócio-educativas. Em sua última passagem pela Fundação, Michel decidiu participar das aulas de skate, destacando-se rapidamente pela qualidade das suas manobras.
Quando terminou de cumprir a medida, Michel tentou sobreviver como esportista. Ele até recebeu um pequeno patrocínio (em forma de roupas e acessórios) de uma grande marca, e deu dezenas de entrevistas para revistas especializadas em skate. Foi nesta época que eu o fotografei andando de skate no centro de São Paulo.
Menos de um ano mais tarde, com dificuldades para sobreviver e sustentar a própria filha, Michel abandonou o skate e passou a comercializar CDs piratas nas ruas de São Paulo. Hoje, ele se recusa a dar entrevistas e falar de sua vida.
Obs. Expus este trabalho juntamente com as pinturas em shapes de skate dos meninos da Fundação Casa, em 3 lugares diferentes: Shopping Aricanduva e Estação Belém do Metrô, em São Paulo, e em uma faculdade em São Caetano do Sul.