O relógio mostrava 5:50 da manhã. La Tirana, a principal festa da região, começava naquele dia. Não tínhamos feito reserva em nenhum hotel e todos os números que chamávamos nos informavam que não havia vagas. Tínhamos dormido duas noites no carro em San Pedro de Atacama, o calor e poeira do deserto tinham deixado meu corpo ressecado e sujo e eu ansiava por um banho quente. Sentamos irritados no banco frio da rodoviária, pensando em alugar um carro, mas a loja só abria às 9. A rodoviária oferecia banho ‘sin calefont‘, ou seja, frio. Decidi esperar por uma solução mais conveniente.
Uma menina de uns 5 anos inventava brincadeiras diferentes para lidar com o tédio da própria espera. Correu pela rodoviária, perseguiu outro menino, tentou se enfiar dentro da banca de jornais que também vende café, fingiu estar presa entre duas grades da rodoviária, chamou por ajuda, rasgou a saia em dois lugares e por fim, sentou-se no chão imundo e começou a retirar garrafas de vidro vazias de refrigerante de um engradado e passar para outro, suspenso mambembemente por outras garrafas vazias. Prendi a respiração, vendo a forma descuidada com que executava a tarefa. Numa fração de segundos, imaginei o engradado caindo, as garrafas espatifando-se no chão, os adultos gritando, a menina chorando….
Ela me viu olhando, eu sorri, ela sorriu de volta um sorriso sem dentes. Traços indígenas e longos cabelos trançados, apesar das roupas ocidentalizadas: minissaia com estampa dos Yankees, meia calça de lã cinza, botinha de couro e uma jaqueta de moletom. As mulheres com quem ela estava também tinham cabelos trançados, vestiam longas saias rodadas escuras e carregavam pacotes enormes cheios de objetos, que espalharam pelo chão da rodoviária e redistribuíram entre caixas e sacolas. Carregavam as crianças menores em slings feitos de tecido indígena e presos às costas. Alternavam-se no cuidado das crianças menores, enquanto as maiores corriam livremente pelo terminal. Elas vieram no mesmo ônibus que nos trouxe de Calama até Iquique e após a reorganização pareciam, também, esperar.
Imaginei pelas vestimentas que tratavam-se de indígenas aymara. O nome aymara se dá aos indígenas que há mais de mil anos habitam a região andina próxima ao lago Titicaca: norte do Chile e da Argentina, sul do Peru e oeste da Bolívia. São diversos grupos culturalmente distintos que falam o mesmo idioma, aymara.
Tradicionalmente, se dedicam ao pastoreio, à pesca e à agricultura, mas as mulheres aymara também sustentam suas famílias com o comércio de bens: roupas, produtos de origem chinesa e produtos agrícolas produzidos em suas propriedades.
Horas de espera mais tarde, resolvemos tentar a sorte ligando novamente nos hotéis de uma lista que construímos ao longo da manhã: indicações do nosso guia de viagens, dos guias de um grupo de brasileiras que conhecemos na rodoviária, das placas com propagandas espalhadas pelas paredes do terminal. Finalmente, conseguimos um quarto num residencial. Quarto com banheiro privado e água quente, o preço que pagamos por este luxo foi ouvir a dona insistentemente nos repetir que era professora e comerciante, professora e comerciante, professora e comerciante, entre outras repetições. Tomamos banho, colocamos as últimas roupas limpas que tínhamos e deitamos. Devorei A Cor Púrpura de capa a capa enquanto o Rodrigo dormia. Ele dormiu quase 24 horas seguidas!
No dia seguinte, sem ter conseguido alugar um carro, mudamos de hospedagem e fomos para um albergue da juventude. Aproveitamos para conhecer a cidade, caminhar pelo calçadão da avenida Baquedano e ir ao Mercado Centenário, o mercado central de Iquique, onde compramos frutas e verduras.
Na manhã seguinte, a dona da locadora nos trouxe o carro que alugaríamos por 7 dias, e 10.000 pesos chilenos (cerca de R$40,00) a diária. Um sedã ano 2000, caindo aos pedaços. O tanque de gasolina vazio. Rodrigo achou que valia a pena. Eu achei que provavelmente acabaríamos no meio do deserto, sem água, sem telefone, sem resgate.
Na primeira noite, acampamos no parque Nacional Pampa de Tamarugal, reserva da única árvore que sobrevive no clima seco e inóspito da região, o parque foi recuperado depois de a região ter sido totalmente devastada pela mineria.
O frio nos acordou implacável no meio da madrugada e decidimos dormir no carro. Não conseguimos, o carro velho era quase tão frio por dentro quanto estava lá fora. Rodrigo acendeu a fogueira e fizemos um chá. Quando o dia amanheceu e trouxe consigo o calor dos raios de sol, já estávamos prontos para pegar a estrada novamente.
Contornamos o parque pela estrada, e fomos para Pica, um oásis no meio do deserto. Ali, produz-se lima e manga. Almoçamos e experimentamos um doce local, de manga e biscoito, gostamos, repetimos a dose. Passamos por La Tirana, para ver o fim absoluto da festa que faz o pequeno povoado de 2.000 habitantes chegar a 200.000 festejantes. Debaixo de um calor insuportável, assistimos a uma banda passar, algo semelhante às do carnaval de Olinda, as barracas de quinquilharias já sendo desmontadas e os participantes da festa todos pedindo carona em direção a Pica, para se refrescar nas águas do oásis e fugir do calor incandescente que nos cercava a todos. Fomos embora.
Escolhemos Mamiña para passar a noite. Nosso guia dizia que ali havia um camping.
Erramos o caminho na tentativa de chegar na cidade e acabamos indo parar próximos a um parque nacional e quase na porta da mineradora Collahuasi, uns 150km de onde deveríamos ir. E a 4500 metros de altitude! Com pouca gasolina e o carro ameaçando quebrar, voltamos “na banguela” para Pozo Almonte, a única cidade da região com postos de abastecimento, para depois de abastecer, novamente arriscar a estrada. Desta vez, o caminho certo era também o caminho cheio de buracos. Levamos horas para chegar em Mamiña.
Chegando lá, descobrimos que, mais uma vez, o guia estava errado: não havia camping ali, e não encontramos um lugar sequer onde pudéssemos armar nossa barraca e passar a noite. Já passava das 23h quando a recepcionista de um hotel nos cedeu um pequeno chalé destinado a mineiros e pudemos tomar um banho e dormir.
O investimento do governo chileno na mineria chegou a tal ponto que, no norte do Chile, muitos estabelecimentos deixaram de atender turistas, disponibilizando seus dormitórios e restaurantes para os trabalhadores das mineradoras. O mineiros trabalham em turnos, dedicando de 5 a 10 dias consecutivos para o trabalho e folgando por outros 5 a 10 dias. Vilarejos como Mamiña, cujos hotéis foram inicialmente construídos para atender os turistas que chegavam à região, viraram cidades-dormitório e é difícil, e às vezes impossível, conseguir um quarto nestes locais.
Mamiña é conhecida pelas águas termais sulfurosas. Antes de irmos embora, tomamos banho em uma piscina termal. As águas têm forte cheiro de enxofre e chegam a cerca de 40° celsius, impossibilitando banhos muito prolongados. Saímos de lá com a alma leve e a pressão baixa.
De Mamiña seguimos em direção a Ruta 5, a estrada principal, que corta o Chile de norte a sul, e fomos para a cidade litorânea de Piságua, onde passamos uns dias longe das securas do deserto. Escreverei sobre Piságua em outro post.
Em nossa última noite na região, voltamos para o parque Nacional Pampa de Tamarugal para acampar. Conhecemos uma família que, simpática, nos ofereceu chá, uma lanterna maior do que a que tínhamos e nos convidou para jantar em sua casa em Iquique, no dia seguinte.
De manhã, saí pelo parque em busca do bicho de pelúcia de Benjamin, o filhinho de 6 anos do casal. O brinquedo preferido havia sido sequestrado por uma das cachorras que vivem no parque, que o levou para longe e o escondeu perto de uma árvore.
À noite, a família nos recebeu de braços abertos em sua casa e generosamente nos alimentou com uma deliciosa variedade de queijos, patês e bolachas. No dia seguinte, nosso último dia em Iquique, nos convidaram novamente para almoçar.
Creio que, de todas as experiências que carregamos desta viagem, as mais marcantes se relacionem com a generosidade ilimitada das pessoas que encontramos inesperadamente pelo caminho.
Espero não estar, assustando. rs
Caramba, inveja total da sua viagem. To doido para contar pra minha namorada.
Mas uma ótimo post.
Oi Yuri,
Te mandei um email, mas depois vou fazer um update no post de Putre, pq muita gente me pergunta sobre esta parte da viagem.
Não tá assustando, não. Curto responder comentários.
Beijo enorme.
Elaine
reitero que el placer de conocerles fue nuestro, …cuando monserrat vio la foto, me pidio que le leyera lo que habia escrito en la pagina,…luego benjamin dijo…que bueno que les conocimos, asi osito tin volvio a dormir conmigo…solo espero que nos veamos pronto,…en mi proximo viaje a santiago me comunicare con tu amiga y asi cumplir con mi cometido,…un abrazo gigante y donde estemos tendran una casa donde llegar….un abrazo…te envio luego la recetas de las cosas….besos