Nossa primeira visita a região dos Yungas aconteceu com R, um inventor estadunidense que vive faz mais de 30 anos na Bolívia. Para mim, a viagem foi horrível. Rodrigo não achou que foi tão péssimo e até chegou a se divertir.
Com um prazo de pauta para entregar no fim daquele dia, topei a ida com a certeza de que faríamos como havia nos dito R: chegando na cidade de Coroico, que fica a duas horas de La Paz, encontraríamos um hotel onde eu pudesse sentar e escrever.
Eu também havia me comprometido a produzir um pequeno vídeo para promover a nova invenção de R, um motor movido a água, e esta era a razão principal pela qual eu estava embarcando nesta viagem.
Quando nos encontramos pela manhã, na porta do prédio onde estávamos morando, R me disse que tinha “resolvido deixar o motor em casa, mas iria procurar um rio adequado para testá-lo e produzir o vídeo no futuro”.
Tive um momento de dúvida: Será que eu devo ir? Acabei resolvendo que sim, já que R fazia aniversário naquela semana e também queria comemorar conosco nesta viagem.
De táxi fomos até El Alto, a cidade acima de La Paz, de onde sai uma parte do transporte para diferentes lugares na Bolívia, e de lá pegamos uma van em direção a Coroico. O motorista, um ‘kamikaze‘ que fazia as curvas da estrada perigosíssima como se estivesse numa competição automobilística, assustou os passageiros. Mas a bem da verdade, eu tinha trabalhado até 5 da manhã e as curvas, e a velocidade com que eram feitas, me deram sono e dormi a maior parte do caminho. Só em Coroico fui informada que alguém pediu encarecidamente para o motorista diminuir a velocidade ‘antes que nos matasse a todos’.
Chegando na pequena cidade, fomos tomar um café da manhã. O combinado seria dali rumar para um hotel que R havia descrito como idílico e maravilhoso. Em poucos minutos tínhamos feito nossos pedidos e ele levantou-se para atender o celular longe de nosso pequeno grupo (eu, Rodrigo e Dana, uma voluntária que havia acabado de chegar à Bolívia para trabalhar com crianças surdas numa escola em La Paz). Passado algum tempo e muitas ligações, ficou claro que, de La Paz, era a esposa de R quem buscava uma acomodação para nós 4, e que não havia nada muito certo.
Depois de inúteis tentativas da esposa para nos hospedar naquela noite (alguns lugares estavam lotados, outros eram caros demais), R sugeriu um hotel perto do rio Coroico, ao qual chegaríamos de táxi. Vinte minutos mais tarde, estavámos na porta de uma chácara onde funcionava apenas um restaurante e uma piscina suja para quem quisesse ‘passar o dia’. Nenhuma hospedagem.
A próxima sugestão foi irmos até uma ‘cidadezinha próxima, onde o clima é menos frio, mas a cultura ainda é andina’. Aparentemente, nos arredores da cidade produzia-se muitas das frutas, verduras e legumes que abastecem La Paz e, segundo R, seria bem interessante para eu fotografar. E o rio, ah o rio dali seria maravilhoso para testar o motor. Neste momento, cogitei voltar para La Paz, mas movida ainda por um espírito de aventura e a vaga ideia de que o dia terminaria bem, afinal de contas, concordei.
Entramos no carro e o motorista parte por algumas estradas de terra até chegar num típico posto de controle boliviano: comércio de frango frito, água, refrigerantes, sucos de cores nem um pouco naturais, gente gritando, vendendo, rindo e falando e carros parados em todos os sentidos completando o caos local.
De repente, R se embrenha entre os carros e alcança um ônibus em movimento, pára na porta, fala com o motorista e entra. Nós três mal temos tempo de cruzar no meio dos carros e entrar no ônibus que voltava a movimentar-se. Sem saber para onde estávamos indo, nos ajeitamos lá dentro.
Alguns minutos mais tarde, quando um cobrador vem nos pedir o dinheiro da passagem, Rodrigo se dá conta de que, pelo valor cobrado, seja lá onde fosse nosso destino, era longe. Vira-se para R, sentado no banco logo atrás do nosso: – “Onde é esta cidade?” – “Duas horas daqui”.
Nos entreolhamos, ainda divertidos: – “Que velho doido!”
Pela estrada tortuosa, que depois soube, é conhecida como Caminho da Morte, nosso ônibus movia-se vagarosamente. Por muitas vezes, sem espaço para passar, junto com os caminhões, ônibus e carros que vinham no sentido contrário, nosso motorista pacientemente dava ré. Do lado direito um paredão de pedras. Do lado esquerdo um despenhadeiro assustador me fazia pensar que bastava um erro de cálculo para cairmos, morro abaixo. Uma regra de trânsito estranha impera ali: Para cruzar com os carros vindo na direção oposta, é necessário ir para o lado esquerdo, deixando o lado direito livre para o outro veículo passar. Não entendeu nada? Nós também não!
Com o passar das horas, o clima da região de Yungas, mais frio e seco, foi dando lugar a um calor úmido tropical. “Estamos seguindo pro norte, na direção de Rurrenabaque”, chutei com ares de certeza. “Como você sabe?”, perguntou Rodrigo. “Por causa da umidade do ar”.
Cinco horas mais tarde, descíamos numa cidade que, mais tarde, vi apropriadamente descrita num guia turístico como ‘precisando seriamente de uma mão de tinta’: Caranavi. É a primeira cidade da região amazônica e a última ‘grande cidade’ antes de Rurrenabaque. Com somente uma estrada de acesso, é um ponto de parada importante para caminhoneiros e para comércio de produtos vindos da amazônia ou a caminho desta.
Descemos do ônibus para sermos completamente envolvidos por uma umidade tropical infernal. Umidade tem braços, tem pernas, tem tentáculos. Agarra, lambe, e… acaba com minha energia e com meu bom humor…
Esqueci de mencionar que preparados para passar o dia nos Yungas, região que, sendo tão próxima dos Andes, é apenas um pouco menos fria e seca que La Paz, não tínhamos roupa para o calor que nos esperava em Caranavi.
R contou que, algum tempo atrás, havia se hospedado num excelente hotel “perto de uma praça”. Com seu parco espanhol parou alguns pedestres e motoristas de táxi para perguntar. Alguns nos indicaram onde a praça ficava, outros disseram que não sabiam do que ele estava falando. Escolhemos um lugar cujos quartos estavam mais afastados da estrada. Pareceu o menos pior dos albergues para caminhoneiros que tínhamos visto.
Estava exausta, suada, puta da vida. Fui tentar tomar um banho e descobri que não havia água nos banheiros. Banheiros unissex, por sinal. Lá dentro, um homem sem camisa não tentou disfarçar os olhares intensos que lançou na direção das minhas coxas quando passei por ele a caminho de um dos boxes com privada.
Passei o resto do dia escrevendo um artigo. Na madrugada, depois de dormir umas poucas horas, peguei o primeiro táxi colectivo de volta para La Paz. Quase abri os braços para o céu quando desci naquele friozinho matinal seco paceño.
Rodrigo e Dana ainda passaram mais um dia com R. Aparentemente, no dia seguinte, nenhum dos dois o deixou escolher muito o que eles iam fazer.
Algumas semanas depois, eu e Rodrigo, sozinhos, alugamos um carro para conhecer a região por conta própria.
P.S. Editado em Dezembro/2016. Esse foi o único texto na vida que me arrependi de ter escrito e postado. Passados alguns anos, mais ainda. Percebi minha falta de flexibilidade, minha indisponibilidade interna para curtir o momento (como o Rodrigo e a Dana fizeram). Deletei algumas partes, ofensivas ao nosso companheiro de viagem.
Eu quero saber o resto da historia,vc me conta??
Menina, que doideira! Eu teria ficado tão irritada quanto você. Não, teria ficado bem mais, que me falta o seu espírito aventureiro! Beijos
Realmente uma viagem inesperada! O problema maior foi a inadequação das roupas, Andes x Amazônia! Loucura!